De: Leonardo Sakamoto
O Brasil não conseguiu garantir padrões mínimos de qualidade de vida a todos os seus trabalhadores rurais, principalmente aqueles em atividades vinculadas ao agronegócio monocultor e exportador em área de expansão da fronteira agrícola. Ocorrências de trabalho escravo, infantil e degradante, superexploração do trabalho, remuneração insuficiente para as necessidades de reprodução social do trabalhador são registrados com freqüência. Prisões, ameaças de morte e assassinatos de lideranças rurais e membros de movimentos sociais que reagem a esse quadro também são constantes e ocorrem quase semanalmente. A estrutura fundiária extremamente concentrada também funciona como uma política de reserva de mão-de-obra, garantindo sempre disponibilidade e baixo custo da força de trabalho para as grandes propriedades rurais.
Parte do agronegócio brasileiro ainda não consegue operar em níveis aceitáveis de desenvolvimento sustentável, fazendo com que o meio ambiente sofra as conseqüências do desmatamento ilegal, da contaminação por agrotóxicos, do assoreamento e poluição de cursos d'água, entre outros. Da mesma forma, para a ampliação da área cultivável há um histórico de expulsão de comunidades tradicionais, sejam elas de ribeirinhos, caiçaras, quilombolas ou indígenas, que ficou mais intensa com a colonização agressiva da região amazônica a partir da década de 70. Esse tipo de ação tem sido sistematicamente denunciado pelos movimentos sociais brasileiros às organizações internacionais.
É evidente que a exploração predatória do meio ambiente e da força de trabalho tem um reflexo no preço das commodities em certos produtos e regiões.
Contudo, não há dados suficientes para provar que esses fatores sejam os principais responsáveis pelos baixos preços das mercadorias brasileiras. Mesmo se hoje fossem fechadas as fronteiras agrícolas da Amazônia e do Cerrado - hoje abertas e em franca expansão - o país ainda teria uma das maiores áreas cultiváveis do planeta. Da mesma forma, seu clima (diverso, entre o temperado e o tropical, o que garante um vasto leque de produtos), relevo (grandes extensões de planícies e planaltos), disponibilidade de água e um ciclo de chuvas relativamente regular na maior parte do ano garantem excelentes condições de produção.
Além disso, o Brasil é um dos países mais populosos do planeta, com cerca de 180 milhões de habitantes, dos quais aproximadamente 10% trabalham no campo. Há mão-de-obra disponível, o que garante o desenvolvimento e a ampliação das atividades sem depender de migração externa ou de um choque de mecanização, como acontece com a União Européia ou os Estados Unidos. Com a regularização de todas as situações trabalhistas insatisfatórias, os preços podem sofrer uma oscilação para cima em alguns produtos, mas isso será insuficiente para tirar do Brasil a liderança em determinadas áreas do mercado de commodities.
O país possui uma legislação que, se fosse seguida corretamente, seria capaz de resolver boa parte dos problemas sociais que ocorrem nessas propriedades rurais. Há um salário mínimo previsto em lei, quantia equivalente hoje a 160 dólares. Contudo, ele perdeu muito de seu poder de compra desde que foi criado em meados do século 20, sendo hoje considerado insuficiente para a manutenção de uma família por mês, como prevê a carta magna brasileira.
Além disso, é obrigatório o registro de contrato entre empregador e empregado mesmo para trabalhos de curta duração, como colheita ou plantio. A Consolidação das Leis do Trabalho brasileira determina o recolhimento de benefícios a serem pagos pelo patrão, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (valor depositado junto com o salário, mas em uma conta especial), férias, décimo terceiro salário, adicional por serviços insalubres, além da previdência pública. No início da década de 80, foi criada a aposentadoria rural que beneficia os lavradores pobres com um salário mínimo mensal, mesmo que eles não tenham contribuído com o sistema previdenciário.
No geral, apesar de apresentar falhas e limitações, a lei brasileira é considerada razoável nessa área. Ela incomoda o capital e prova disso são as fortes pressões de empregadores por uma reforma que diminua os gastos com os direitos trabalhistas.
O que existe efetivamente é um descompasso entre o que prevê a lei e a realidade no campo. Na busca por aumentar sua faixa de lucros e seu poder de concorrência no mercado nacional e internacional, parte dos agricultores descumpre o que está previsto na legislação e explora os trabalhadores, em intensidades e formas diferentes. Ficam com parte dessa expropriação e transferem a maior fatia para: a) a indústria, b) comerciantes de commodities de outros países e c) o sistema bancário brasileiro e internacional - que financia a produção. A mais-valia arrancada dos trabalhadores rurais brasileiros escorre na maior parte das vezes para o exterior, beneficiando empresas e governos.
Os casos de exploração mais leves são mais freqüentes e dizem respeito ao pagamento de baixos salários e à manutenção de condições que colocam em risco a saúde do trabalhador. Do outro lado, as ocorrências mais graves estão na utilização de mão-de-obra escrava. Estas, contudo, apresentam incidência muito pequena se comparada com o total de propriedades rurais brasileiras. Para se ter uma idéia, das 5 milhões de unidades rurais existentes, menos de 0,03% delas foram fiscalizadas após serem feitas denúncias de escravidão. A maioria dessas fazendas visitadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego é de grandes propriedades rurais, dedicadas à criação extensiva ou à monocultura.
Nos últimos dois anos, mais de dez trabalhadores que atuavam no corte da cana-de-açúcar morreram por excesso de trabalho no interior do Estado de São Paulo. Como o salário é pago de acordo com a produtividade, eles levaram seus corpos ao limite da exaustão para aumentar seus ganhos e levar mais dinheiro para casa. Essa é a situação limite, que ocorre em uma parcela pequena do total de cortadores de cana. Mas grande parte dos cortadores sofre em silêncio com problemas também graves, como os citados acima.
Como os casos "mais leves" de desrespeito ao trabalhador são mais freqüentes, eles passam despercebidos na mídia, preteridos em detrimento à gravidade do trabalho escravo e infantil, que ocorrem em menor número. Também não é interesse de muitos meios de comunicação discutir aumentos de salários no campo, uma vez que é freqüente a propriedade de TVs, jornais e rádios por grupos econômicos do agronegócio. Já os assassinatos de trabalhadores rurais são vistos como "baixas de conflito", inseridos em um discurso de que a defesa da propriedade privada predispõe e justifica o uso da força. Segundo esse discurso, é comum o progresso ter as suas vítimas.
O Brasil contribuiu com a industrialização da Europa Ocidental. Para lá foram escoados metais e pedras preciosas extraídas das minas - e perdidos por Portugal através do comércio desigual com a Inglaterra - permitindo a capitalização da burguesia daquele país. Ao mesmo tempo, as matérias-primas importadas do país sul-americano, que utilizava mão-de-obra escrava, garantiam o abastecimento da crescente indústria. O grosso do lucro decorrente da expropriação da força de trabalho dos escravos brasileiros não ficava com os proprietários de terra da colônia, é claro. Era transferido para a distante indústria, que podia acumular e reproduzir o seu capital.
Neste início do século 21, o Brasil ainda sente reflexos de sua herança colonial. Ele continua a ser uma plataforma de exportação de commodities, pautado pelas economias com industrialização mais antiga, com um processo de expropriação da força de trabalho. O sistema de plantation, utilizado nas colônias da América e África pelos europeus durante séculos, manteve-se como a principal estrutura agrária no país. São representados hoje pelos modernos latifúndios monocultores e exportadores do agronegócio globalizado.
A força política dos proprietários rurais continua sendo um entrave para a mudança dessa estrutura. Pois a necessidade do governo brasileiro de divisas para honrar seus compromissos externos (devido ao endividamento causado pela dependência econômica de uma industrialização tardia) faz com que seja garantida uma laissez-faire no campo.
O detentor da terra na Amazônia, por exemplo, muitas vezes exerce o poder político local, seja através de influência econômica, seja através da força física. O limite entre as esferas pública e privada se rompe. Nos parlamentos e governos, há representantes dos poderes legislativo e executivo eleitos com doações provenientes dos lucros de fazendas que estão na "lista suja" do trabalho escravo e/ou defendem seus interesses.
Há no Congresso Nacional um influente grupo de parlamentares que defende os interesses das grandes empresas rurais, a chamada "bancada ruralista". Infelizmente, esses deputados têm inviabilizado a aprovação de leis importantes que poderiam ajudar efetivar os direitos dos trabalhados do campo - como a que prevê o confisco das terras em que trabalho escravo seja encontrado. Temem que isso diminua os lucros dos proprietários rurais, seus principais eleitores.
Os latifundiários produzem e exportam, ditam regras, fazem leis, sob os auspícios dos governos, porque estes precisam de dinheiro. Apóia-se com recursos de Estado essa classe rural para que continuem garantindo a manutenção desse sistema. Muitos que fazem parte dela ocupam postos nas esferas de governo municipal, estadual e federal, possuem representantes eleitos com seus recursos nesses cargos ou atuam em fortes lobbies.
Apesar do problema existir em todos os países do mundo, inclusive na Europa com o tráfico de mulheres para a exploração sexual, os governos evitam reconhecer a sua existência para impedir a aplicação de barreiras comerciais sob a justificativa social. O Brasil foi o primeiro país a assumir publicamente a existência de escravos contemporâneos diante da Organização Internacional do Trabalho e do plenário das Nações Unidas - conseqüência das ações da sociedade civil organizada e dos setores progressistas de seu governo. Após isso, deu início à implantação de um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, monitorado por uma comissão nacional formada por governo e entidades sociais, sob a observação da OIT. Os números mostram que a iniciativa vem dando resultados. Entre 1995 e 2006, mais de 20 mil pessoas foram libertadas da escravidão por equipes de fiscalização do governo federal brasileiro, das quais cerca de 75% apenas nos últimos três anos. Indenizações milionárias contra os escravocratas são decididas pela Justiça e há uma série de medidas preventivas e repressivas em curso.
No total, considerando todos os tipos de fiscalização trabalhista, de 1996 a 2005, 610.675 empresas passaram por vistoria do governo federal. Isso fez com que 4.687.845 trabalhadores fossem devidamente registrados por seus empregadores, dos quais 782.033 apenas na agricultura. Cerca de 70 mil crianças foram retiradas do trabalho.
É necessário acelerar a efetivação dos direitos dos trabalhadores e alterar a estrutura agrária brasileira. A tarefa é árdua, tendo em vista as razões expostas anteriormente, e passa também por mudanças políticas e econômicas que, certamente, irão incomodar as elites rurais, industriais, comerciais e financeiras, tanto do Brasil como do exterior, que lucram com esse sistema.
A implantação de barreiras comerciais indiscriminadas não contribuirá com esse processo de melhoria das condições sociais no campo no Brasil, uma vez que os maiores prejudicados serão os trabalhadores rurais. Ao perder mercados, os proprietários de fazendas compensam aumentando a exploração do trabalhador para que seja mantida a sua rentabilidade. Ao mesmo tempo, o sistema de proteção do capital agrário brasileiro também será acionado para ressarcir os prejuízos, emprestando recursos a taxas muito baixas para amenizar as dívidas dos produtores. Isso aconteceu este ano com plantadores de soja que pressionaram o governo federal a ajudá-los, após a queda do preço do grão no mercado internacional. No Brasil, os lucros são embolsados por poucos e os prejuízos divididos com a sociedade.
Boa parte dos quase 25 bilhões de dólares que serão destinados pelo governo federal ao financiamento da produção nos latifúndios na safra 2006/2007 poderiam ser utilizados para aumentar o ritmo da reforma agrária e da produção agrícola familiar ou mesmo para a melhoria dos sistemas públicos de educação e saúde. É importante ressaltar que apesar das grandes fazendas ficarem com a maior fatia do bolo do financiamento público, as pequenas propriedades é que empregam 80% da mão-de-obra no campo, produzem 60% dos alimentos consumidos pela população brasileira e são responsáveis por boa parte das exportações. Por exemplo, 80% do café é plantado nessas pequenas propriedades, muitas vezes familiares ou empregando trabalhadores em melhores condições.
A solução mais racional passa por um conjunto de ações nacionais e multilaterais reprimindo os ganhos econômicos gerados pela exploração do trabalho não só no Brasil, mas em todos os países. A restrição a importações não deve ser feita de maneira generalizada e sim analisando caso a caso para não cometer injustiças com os países da periferia. O país já possui instrumentos para que os compradores de commodities não adquiram mercadorias produzidas com trabalho escravo ou infantil, por exemplo.
Uma rede de "Empresas Amigas da Criança" reúne empregadores que assumiram publicamente compromissos nas áreas de combate ao trabalho infantil, educação, saúde, direitos civis e investimento social na criança e no adolescente. A certificação é feita pela Fundação Abrinq.
Já o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo reúne empresas e associações, representando uma parcela significativa do Produto Interno Bruto brasileiro, que se comprometeram a adotar medidas para manter suas cadeias produtivas longe do trabalho escravo. Com varejistas, atacadistas, industriais e exportadores negando-se a comprar produtos que possam ter trabalho escravo na origem, outros fornecedores intermediários, como os frigoríficos, já estão se mobilizando para excluir o produtor que utiliza essa prática. Dessa forma, o corte de custos trazido ao empresário rural pela utilização desse tipo de mão-de-obra está deixando de ser um bom negócio. A sociedade brasileira está começando a deixar claro para essas pessoas: ou agem dentro da lei ou ficam sem clientes. O Pacto é coordenado pelo Instituto Ethos e tem a participação da Organização Internacional do Trabalho.
O governo federal brasileiro criou, em 2003, um dos mais importantes instrumentos para o combate ao trabalho escravo: a "lista suja", um cadastro com os infratores que comprovadamente utilizaram esse tipo de mão-de-obra. Ela é atualizada semestralmente e conta, hoje, com 178 empregadores rurais. Com base nela é suspenso o direito a créditos em instituições financeiras nacionais e internacionais. E compradores, tanto do Brasil como do exterior, já a utilizam para checar se um fornecedor está agindo dentro da lei.
Grandes empresas que compravam de fazendas infratoras, como a Bunge e a Cargill, após pressão da sociedade, aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Elas têm ganhado muito dinheiro com a exploração da soja e a destruição da floresta amazônica e do Cerrado e agora vão ter que responder por seus atos. Uma das exigências é não comprar de produtores rurais que estão na "lista suja". O mesmo comportamento pode ser adotado por qualquer empresa. A lista está disponível em alemão, inglês e francês no site da ONG Repórter Brasil.
Tudo isso, é claro, apenas mitiga o impacto do problema, mas não o resolve. E deve-se considerar que a aposta do governo federal no biodiesel e no aumento da produção do álcool combustível está, desde já, penhorando a força de trabalho. Ou seja, a exploração irracional de mão-de-obra só tende a crescer.
Infelizmente, a forma como vem sendo feito o desenvolvimento da agricultura brasileira, principalmente em regiões de expansão agrícola na Amazônia e no Cerrado, tem trazido crescimento econômico, mas não bem-estar social. Apesar do nível de consciência do trabalhador rural ter aumentado significativamente nos últimos anos, o que é pré-condição para que ele se torne um protagonista social, a mobilização ainda é insuficiente para uma mudança radical na estrutura de concentração econômica no campo.
O governo Lula, mais do que os governos anteriores, esteve aberto ao diálogo com grupos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que pressionam por uma efetiva reforma agrária. Mas frustrou a expectativas por não tomar decisões que alterariam o statuo quo no campo.
Uma delas seria dar, pelo menos, o mesmo apoio garantido ao latifúndio para a pequena propriedade, considerando que a sua produtividade é comparável ou maior, ao passo que a degradação do meio ambiente e da força de trabalho são maiores na grande propriedade. Mais de 214 milhões de hectares de terras (quase metade da área agriculturável do país) estão divididos entre apenas 112 mil propriedades. Além disso, metade das grandes propriedades rurais são consideradas improdutivas. Ou seja, 58 mil latifúndios (51%) são improdutivos e abocanham aproximadamente 133 milhões de hectares.
Para tanto é necessário um enfrentamento político e econômico contra as condições que garante a exploração do trabalhador - fato que parece distante. No momento em que a campanha à Presidência chega à reta final, é preciso que seja dito em alta voz o comprometimento dos candidatos. Caso contrário, as forças arcaicas, modernizadas e subordinadas pelo capital monopolista global, permanecerão hegemônicas.
Parte do agronegócio brasileiro ainda não consegue operar em níveis aceitáveis de desenvolvimento sustentável, fazendo com que o meio ambiente sofra as conseqüências do desmatamento ilegal, da contaminação por agrotóxicos, do assoreamento e poluição de cursos d'água, entre outros. Da mesma forma, para a ampliação da área cultivável há um histórico de expulsão de comunidades tradicionais, sejam elas de ribeirinhos, caiçaras, quilombolas ou indígenas, que ficou mais intensa com a colonização agressiva da região amazônica a partir da década de 70. Esse tipo de ação tem sido sistematicamente denunciado pelos movimentos sociais brasileiros às organizações internacionais.
É evidente que a exploração predatória do meio ambiente e da força de trabalho tem um reflexo no preço das commodities em certos produtos e regiões.
Contudo, não há dados suficientes para provar que esses fatores sejam os principais responsáveis pelos baixos preços das mercadorias brasileiras. Mesmo se hoje fossem fechadas as fronteiras agrícolas da Amazônia e do Cerrado - hoje abertas e em franca expansão - o país ainda teria uma das maiores áreas cultiváveis do planeta. Da mesma forma, seu clima (diverso, entre o temperado e o tropical, o que garante um vasto leque de produtos), relevo (grandes extensões de planícies e planaltos), disponibilidade de água e um ciclo de chuvas relativamente regular na maior parte do ano garantem excelentes condições de produção.
Além disso, o Brasil é um dos países mais populosos do planeta, com cerca de 180 milhões de habitantes, dos quais aproximadamente 10% trabalham no campo. Há mão-de-obra disponível, o que garante o desenvolvimento e a ampliação das atividades sem depender de migração externa ou de um choque de mecanização, como acontece com a União Européia ou os Estados Unidos. Com a regularização de todas as situações trabalhistas insatisfatórias, os preços podem sofrer uma oscilação para cima em alguns produtos, mas isso será insuficiente para tirar do Brasil a liderança em determinadas áreas do mercado de commodities.
O país possui uma legislação que, se fosse seguida corretamente, seria capaz de resolver boa parte dos problemas sociais que ocorrem nessas propriedades rurais. Há um salário mínimo previsto em lei, quantia equivalente hoje a 160 dólares. Contudo, ele perdeu muito de seu poder de compra desde que foi criado em meados do século 20, sendo hoje considerado insuficiente para a manutenção de uma família por mês, como prevê a carta magna brasileira.
Além disso, é obrigatório o registro de contrato entre empregador e empregado mesmo para trabalhos de curta duração, como colheita ou plantio. A Consolidação das Leis do Trabalho brasileira determina o recolhimento de benefícios a serem pagos pelo patrão, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (valor depositado junto com o salário, mas em uma conta especial), férias, décimo terceiro salário, adicional por serviços insalubres, além da previdência pública. No início da década de 80, foi criada a aposentadoria rural que beneficia os lavradores pobres com um salário mínimo mensal, mesmo que eles não tenham contribuído com o sistema previdenciário.
No geral, apesar de apresentar falhas e limitações, a lei brasileira é considerada razoável nessa área. Ela incomoda o capital e prova disso são as fortes pressões de empregadores por uma reforma que diminua os gastos com os direitos trabalhistas.
O que existe efetivamente é um descompasso entre o que prevê a lei e a realidade no campo. Na busca por aumentar sua faixa de lucros e seu poder de concorrência no mercado nacional e internacional, parte dos agricultores descumpre o que está previsto na legislação e explora os trabalhadores, em intensidades e formas diferentes. Ficam com parte dessa expropriação e transferem a maior fatia para: a) a indústria, b) comerciantes de commodities de outros países e c) o sistema bancário brasileiro e internacional - que financia a produção. A mais-valia arrancada dos trabalhadores rurais brasileiros escorre na maior parte das vezes para o exterior, beneficiando empresas e governos.
Os casos de exploração mais leves são mais freqüentes e dizem respeito ao pagamento de baixos salários e à manutenção de condições que colocam em risco a saúde do trabalhador. Do outro lado, as ocorrências mais graves estão na utilização de mão-de-obra escrava. Estas, contudo, apresentam incidência muito pequena se comparada com o total de propriedades rurais brasileiras. Para se ter uma idéia, das 5 milhões de unidades rurais existentes, menos de 0,03% delas foram fiscalizadas após serem feitas denúncias de escravidão. A maioria dessas fazendas visitadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego é de grandes propriedades rurais, dedicadas à criação extensiva ou à monocultura.
Nos últimos dois anos, mais de dez trabalhadores que atuavam no corte da cana-de-açúcar morreram por excesso de trabalho no interior do Estado de São Paulo. Como o salário é pago de acordo com a produtividade, eles levaram seus corpos ao limite da exaustão para aumentar seus ganhos e levar mais dinheiro para casa. Essa é a situação limite, que ocorre em uma parcela pequena do total de cortadores de cana. Mas grande parte dos cortadores sofre em silêncio com problemas também graves, como os citados acima.
Como os casos "mais leves" de desrespeito ao trabalhador são mais freqüentes, eles passam despercebidos na mídia, preteridos em detrimento à gravidade do trabalho escravo e infantil, que ocorrem em menor número. Também não é interesse de muitos meios de comunicação discutir aumentos de salários no campo, uma vez que é freqüente a propriedade de TVs, jornais e rádios por grupos econômicos do agronegócio. Já os assassinatos de trabalhadores rurais são vistos como "baixas de conflito", inseridos em um discurso de que a defesa da propriedade privada predispõe e justifica o uso da força. Segundo esse discurso, é comum o progresso ter as suas vítimas.
Histórico de exploração
O processo de exploração do trabalhador, forjado no Brasil desde o início de sua colonização, possui uma paternidade dividida entre a elite nacional e a burguesia européia e, mais tardiamente, a norte-americana. O Brasil nasceu como plataforma de exportações de commodities para a Europa, a ponto da historiografia do período colonial estar dividida de acordo com os ciclos (crescimento, apogeu e queda) das mercadorias que oferecíamos ao mercado internacional. Primeiro foi o extrativismo vegetal com o pau-brasil, passando pela agricultura da cana para açúcar, algodão, borracha, café, entre outros. A escolha do que era produzido ou extraído, em primeira instância, não partia das elites locais ou da metrópole portuguesa (durante o período colonial), mas sim das demandas dos mercados europeus.O Brasil contribuiu com a industrialização da Europa Ocidental. Para lá foram escoados metais e pedras preciosas extraídas das minas - e perdidos por Portugal através do comércio desigual com a Inglaterra - permitindo a capitalização da burguesia daquele país. Ao mesmo tempo, as matérias-primas importadas do país sul-americano, que utilizava mão-de-obra escrava, garantiam o abastecimento da crescente indústria. O grosso do lucro decorrente da expropriação da força de trabalho dos escravos brasileiros não ficava com os proprietários de terra da colônia, é claro. Era transferido para a distante indústria, que podia acumular e reproduzir o seu capital.
Neste início do século 21, o Brasil ainda sente reflexos de sua herança colonial. Ele continua a ser uma plataforma de exportação de commodities, pautado pelas economias com industrialização mais antiga, com um processo de expropriação da força de trabalho. O sistema de plantation, utilizado nas colônias da América e África pelos europeus durante séculos, manteve-se como a principal estrutura agrária no país. São representados hoje pelos modernos latifúndios monocultores e exportadores do agronegócio globalizado.
A força política dos proprietários rurais continua sendo um entrave para a mudança dessa estrutura. Pois a necessidade do governo brasileiro de divisas para honrar seus compromissos externos (devido ao endividamento causado pela dependência econômica de uma industrialização tardia) faz com que seja garantida uma laissez-faire no campo.
O detentor da terra na Amazônia, por exemplo, muitas vezes exerce o poder político local, seja através de influência econômica, seja através da força física. O limite entre as esferas pública e privada se rompe. Nos parlamentos e governos, há representantes dos poderes legislativo e executivo eleitos com doações provenientes dos lucros de fazendas que estão na "lista suja" do trabalho escravo e/ou defendem seus interesses.
Há no Congresso Nacional um influente grupo de parlamentares que defende os interesses das grandes empresas rurais, a chamada "bancada ruralista". Infelizmente, esses deputados têm inviabilizado a aprovação de leis importantes que poderiam ajudar efetivar os direitos dos trabalhados do campo - como a que prevê o confisco das terras em que trabalho escravo seja encontrado. Temem que isso diminua os lucros dos proprietários rurais, seus principais eleitores.
Os latifundiários produzem e exportam, ditam regras, fazem leis, sob os auspícios dos governos, porque estes precisam de dinheiro. Apóia-se com recursos de Estado essa classe rural para que continuem garantindo a manutenção desse sistema. Muitos que fazem parte dela ocupam postos nas esferas de governo municipal, estadual e federal, possuem representantes eleitos com seus recursos nesses cargos ou atuam em fortes lobbies.
Melhoria das condições
Apesar disso, setores progressistas dos governos que sucederam a ditadura militar têm insistido, com êxitos, na efetivação dos direitos humanos no campo. Sindicatos de trabalhadores rurais e movimentos da sociedade civil pela reforma agrária sentiram, principalmente no mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma melhoria nas condições de vida do campesinato, dos pequenos proprietários dedicado à agricultura familiar e dos trabalhadores assalariados rurais - que formam a mão-de-obra na agricultura. A fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego se intensificou, pressionando os empregadores rurais pela efetivação dos direitos no campo. Um exemplo disso são os números do combate ao trabalho escravo contemporâneo.Apesar do problema existir em todos os países do mundo, inclusive na Europa com o tráfico de mulheres para a exploração sexual, os governos evitam reconhecer a sua existência para impedir a aplicação de barreiras comerciais sob a justificativa social. O Brasil foi o primeiro país a assumir publicamente a existência de escravos contemporâneos diante da Organização Internacional do Trabalho e do plenário das Nações Unidas - conseqüência das ações da sociedade civil organizada e dos setores progressistas de seu governo. Após isso, deu início à implantação de um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, monitorado por uma comissão nacional formada por governo e entidades sociais, sob a observação da OIT. Os números mostram que a iniciativa vem dando resultados. Entre 1995 e 2006, mais de 20 mil pessoas foram libertadas da escravidão por equipes de fiscalização do governo federal brasileiro, das quais cerca de 75% apenas nos últimos três anos. Indenizações milionárias contra os escravocratas são decididas pela Justiça e há uma série de medidas preventivas e repressivas em curso.
No total, considerando todos os tipos de fiscalização trabalhista, de 1996 a 2005, 610.675 empresas passaram por vistoria do governo federal. Isso fez com que 4.687.845 trabalhadores fossem devidamente registrados por seus empregadores, dos quais 782.033 apenas na agricultura. Cerca de 70 mil crianças foram retiradas do trabalho.
É necessário acelerar a efetivação dos direitos dos trabalhadores e alterar a estrutura agrária brasileira. A tarefa é árdua, tendo em vista as razões expostas anteriormente, e passa também por mudanças políticas e econômicas que, certamente, irão incomodar as elites rurais, industriais, comerciais e financeiras, tanto do Brasil como do exterior, que lucram com esse sistema.
A implantação de barreiras comerciais indiscriminadas não contribuirá com esse processo de melhoria das condições sociais no campo no Brasil, uma vez que os maiores prejudicados serão os trabalhadores rurais. Ao perder mercados, os proprietários de fazendas compensam aumentando a exploração do trabalhador para que seja mantida a sua rentabilidade. Ao mesmo tempo, o sistema de proteção do capital agrário brasileiro também será acionado para ressarcir os prejuízos, emprestando recursos a taxas muito baixas para amenizar as dívidas dos produtores. Isso aconteceu este ano com plantadores de soja que pressionaram o governo federal a ajudá-los, após a queda do preço do grão no mercado internacional. No Brasil, os lucros são embolsados por poucos e os prejuízos divididos com a sociedade.
Boa parte dos quase 25 bilhões de dólares que serão destinados pelo governo federal ao financiamento da produção nos latifúndios na safra 2006/2007 poderiam ser utilizados para aumentar o ritmo da reforma agrária e da produção agrícola familiar ou mesmo para a melhoria dos sistemas públicos de educação e saúde. É importante ressaltar que apesar das grandes fazendas ficarem com a maior fatia do bolo do financiamento público, as pequenas propriedades é que empregam 80% da mão-de-obra no campo, produzem 60% dos alimentos consumidos pela população brasileira e são responsáveis por boa parte das exportações. Por exemplo, 80% do café é plantado nessas pequenas propriedades, muitas vezes familiares ou empregando trabalhadores em melhores condições.
A solução mais racional passa por um conjunto de ações nacionais e multilaterais reprimindo os ganhos econômicos gerados pela exploração do trabalho não só no Brasil, mas em todos os países. A restrição a importações não deve ser feita de maneira generalizada e sim analisando caso a caso para não cometer injustiças com os países da periferia. O país já possui instrumentos para que os compradores de commodities não adquiram mercadorias produzidas com trabalho escravo ou infantil, por exemplo.
Uma rede de "Empresas Amigas da Criança" reúne empregadores que assumiram publicamente compromissos nas áreas de combate ao trabalho infantil, educação, saúde, direitos civis e investimento social na criança e no adolescente. A certificação é feita pela Fundação Abrinq.
Já o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo reúne empresas e associações, representando uma parcela significativa do Produto Interno Bruto brasileiro, que se comprometeram a adotar medidas para manter suas cadeias produtivas longe do trabalho escravo. Com varejistas, atacadistas, industriais e exportadores negando-se a comprar produtos que possam ter trabalho escravo na origem, outros fornecedores intermediários, como os frigoríficos, já estão se mobilizando para excluir o produtor que utiliza essa prática. Dessa forma, o corte de custos trazido ao empresário rural pela utilização desse tipo de mão-de-obra está deixando de ser um bom negócio. A sociedade brasileira está começando a deixar claro para essas pessoas: ou agem dentro da lei ou ficam sem clientes. O Pacto é coordenado pelo Instituto Ethos e tem a participação da Organização Internacional do Trabalho.
O governo federal brasileiro criou, em 2003, um dos mais importantes instrumentos para o combate ao trabalho escravo: a "lista suja", um cadastro com os infratores que comprovadamente utilizaram esse tipo de mão-de-obra. Ela é atualizada semestralmente e conta, hoje, com 178 empregadores rurais. Com base nela é suspenso o direito a créditos em instituições financeiras nacionais e internacionais. E compradores, tanto do Brasil como do exterior, já a utilizam para checar se um fornecedor está agindo dentro da lei.
Grandes empresas que compravam de fazendas infratoras, como a Bunge e a Cargill, após pressão da sociedade, aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Elas têm ganhado muito dinheiro com a exploração da soja e a destruição da floresta amazônica e do Cerrado e agora vão ter que responder por seus atos. Uma das exigências é não comprar de produtores rurais que estão na "lista suja". O mesmo comportamento pode ser adotado por qualquer empresa. A lista está disponível em alemão, inglês e francês no site da ONG Repórter Brasil.
Tudo isso, é claro, apenas mitiga o impacto do problema, mas não o resolve. E deve-se considerar que a aposta do governo federal no biodiesel e no aumento da produção do álcool combustível está, desde já, penhorando a força de trabalho. Ou seja, a exploração irracional de mão-de-obra só tende a crescer.
Infelizmente, a forma como vem sendo feito o desenvolvimento da agricultura brasileira, principalmente em regiões de expansão agrícola na Amazônia e no Cerrado, tem trazido crescimento econômico, mas não bem-estar social. Apesar do nível de consciência do trabalhador rural ter aumentado significativamente nos últimos anos, o que é pré-condição para que ele se torne um protagonista social, a mobilização ainda é insuficiente para uma mudança radical na estrutura de concentração econômica no campo.
O governo Lula, mais do que os governos anteriores, esteve aberto ao diálogo com grupos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que pressionam por uma efetiva reforma agrária. Mas frustrou a expectativas por não tomar decisões que alterariam o statuo quo no campo.
Uma delas seria dar, pelo menos, o mesmo apoio garantido ao latifúndio para a pequena propriedade, considerando que a sua produtividade é comparável ou maior, ao passo que a degradação do meio ambiente e da força de trabalho são maiores na grande propriedade. Mais de 214 milhões de hectares de terras (quase metade da área agriculturável do país) estão divididos entre apenas 112 mil propriedades. Além disso, metade das grandes propriedades rurais são consideradas improdutivas. Ou seja, 58 mil latifúndios (51%) são improdutivos e abocanham aproximadamente 133 milhões de hectares.
Para tanto é necessário um enfrentamento político e econômico contra as condições que garante a exploração do trabalhador - fato que parece distante. No momento em que a campanha à Presidência chega à reta final, é preciso que seja dito em alta voz o comprometimento dos candidatos. Caso contrário, as forças arcaicas, modernizadas e subordinadas pelo capital monopolista global, permanecerão hegemônicas.
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